Sunday, November 27, 2005

CARTA DE UM SOLDADO EM STALINGRADO PARA ANA



Ana, minha doce Ana, diante de ti eu me confesso. Desço o véu que cobre o meu rosto e deixo que você veja uma lágrima cair e borrar o meu rosto maquiado pelas emoções que não senti. Diante de ti, minha inesquecível Ana, eu me dispo, tiro a roupa da hipocrisia em que estou vestido e volto a ser como fui nos tempos em que o paraíso era bem mais que fumar um baseado.
Tirando o véu e despindo a minha roupa que não é minha eu lhe mostro quem eu realmente sou. Eu nem sei se sou um inconformado; um louco; se um apelo emocional ou mesmo esse complexo. Essa confusão de sentimentos, essa fúria de emoções, de pensamentos inenarráveis, de desejos inconfessáveis, de frustrações. Um eu prestes a explodir nessa guerra cotidiana chamada vida.
Eu sou um homem-bomba, sou homem-esperança, sou homem, Ana. Quando nasci não houve um anjo desses que vivem nas sombras ou na luz dos palcos que me viesse dizer: vai Fredson, ser gauche na vida. Isso eu aprendi a ser sozinho. Disso hoje eu fujo sozinho. Há tempos não há grandes alegrias ou grandes tristezas, ou nada de muito apoteótico em mim, apenas eu, um bloco do eu sozinho. Um eu todo retorcido, todo contorcido, todo cheio de desesperança, de neologismos, de gírias, de revolta, de náusea, lendo a Idade da Razão. Uma figura toda rabiscada, parecendo o desenho de uma criança com giz de cera. Esse eu todo cheio de bifurcações.
Bifurcação entre o certo e o errado, entre a virtude e o delito. Bifurcação entre o céu e o inferno. Entre as margens do rio onde um dia benzeram o Cristo e a sua profundeza desconhecida por todos os fiéis. Há uma linha muito tênue que separa a razão da loucura que há em mim. Pode acreditar em mim quando digo que eu já estive entre os loucos, já corri entre as estrelas, já mergulhei no universo dos teus olhos, já brinquei no céu da tua boca, escrevi com giz de cera o meu nome lá demarcando o meu território.
Trago em mim, mil coisas. Um escapulário e um profano sudário que enxugou o teu rosto depois de me amar. Entre o gozo do vinho e a acidez do limão, os prazeres da carne e a angústia do pecado. A euforia da bebida e tristeza da ressaca. Mas você pode estar se perguntando, Ana, por que esse soldado que vive tão distante, vem se confessar a mim, que sou prostituta? Eu lhe respondo meu amor.
Confesso-me a você por não acreditar mais no que fizeram a minha imaginação criar quando eu era criança. Tão pouco acredito naqueles que se vestem de luto e que vivem da ilusão e do medo alheio. Mas eu acredito em Ana, que me é real, que é acariciável, que tem um cheiro gostoso, tão prazeroso quanto o aroma do café recém-saído do bule, do almoço que acabou de ser colocado no prato, do bolo de milho que acaba de sair do forno. Ana tem nome de santa. Por isso eu sou um pecador, com todo ardor, por desejá-la além das minhas forças, por querê-la além, muito além da poesia, dos gestos, do sexo e do amor.
Confesso-me a Ana porque ela traz entre suas pernas o poder da criação. Por ela me excitar, por ela me ler tão dedicadamente tentando entender o que sou eu, o que quero dizer com isso? Por que ela me faz questionamentos, porque ela me agrada, faz-me viajar na metafísica do desejo distante e do irreal. “Mas o desejo é o que torna o irreal possível”. Ah sim, ela me tira de mim, deixa-me sozinho sem ninguém em mim quando faz preces e combinações da esquerda com a direita, quando sorri, “ei ei”, quando morde o seu lábio superior com o inferior, quando ajeita o decote da sua blusa... Menina só eu sei, as esquinas porque passei só eu sei.
Esquinas. Noites. Tardes vazias. Madrugadas quentes. Insônia que me atormenta. Manhãs que me desilude. Por aí eu ando. Tenho hábitos como qualquer um louco consciente de suas ações. Tenho dúvidas como qualquer lunático: café ou manga? Será que morrerei um dia? Será que na morte eu vou realmente descansar ou vão ficar rezando em meu nome? Será que me tornarão o que não fui à vida toda, o que neguei a vida toda, SANTO! Será que me condenarão a vida eterna?
Tenho loucuras também, nem todos conseguem fugir a regra. Já tentei por milhares de vezes escrever um poema que fosse seu, que cheirasse a você, que tivesse a sua classe. Essa é mais uma tentativa de atingi-la nos olhos.
Tenho muitos sonhos. Mas tenho medo deles, de realizá-los. Complexo? Paradoxo? Loucura apenas (internem esse louco, tragam a camisa de força, ele diz que não existe verdade na tevê nem na Veja). Fujo totalmente à lógica. Não tente me encontrar no universo dos números, sou todo emoção como Maiakovski. Mas vou deixar a conclusão com você que sempre me envolve em silêncio, analisa o que digo e fala o que pensa. Não tenha medo de me magoar, trago em mim várias cicatrizes. Sofri vários ataques e sempre vi o sol nascer na manhã seguinte.
Onde estou vejo sempre muitas pessoas tombando por motivos vários, alguns que não valem à pena, mas somos humanos, fardados ou não, em guerra ou não. Outras pessoas são guerreiras e sempre se levantam e voltam a sorrir. Não quero dizer com isso que seja fácil curar uma ferida, que ela cicatrize rápido, que não exija um pouco de cuidado e carinho. Eu jamais negaria que tudo isso é necessário. Mas com ou sem isso temos de seguir em frente.
Enquanto lhe escrevo, olho para o céu e vejo uma enorme lua brilhando no céu nas retinas dos meus olhos, ela mais parece um favo de mel. Lembro que você gostava de admirar a lua, será que ela nos une agora? Se eu pudesse agora, levar-lhe-ia ao Mar da Tranqüilidade, sentaríamos nas suas margens e eu leria o seu poema favorito, poema de sete faces, cantaria sua música, Mulheres de Atenas. Depois disso faríamos amor até o sol nascer.
Aqui em Stalingrado, eu tenho refletido muito sobre minha vida. Sempre fui um pouco do que eu queria realmente ser e muito do que programaram para que eu fosse. E eu fui ficando naquele intervalo como um vazio. Perdi muitos sonhos. Parte da esperança que tinha no ser humano já foi também.
A esperança que ainda carrego comigo é que ao fim dessa guerra, em que Stalingrado, sou eu, alguém que se chame Ana e que tenha conhecido alguém parecido comigo nos gestos e nos conflitos internos descritos nessa carta, possa encontrá-la dentro do meu bolso e ao lê-la saiba que alguém um dia foi à guerra e pensou nela e que uma Ana foi o alimento e a motivação que fez um certo Fredson acordar para mais um dia de batalha.
Pensava em Ana, rezava para Sant’Ana e pedia que ela com seu sorriso afastasse dele aquele cálice cheio de ódio e sangue, de pessoas mutiladas e de injustiças. Ou então que ela trouxesse a redenção em suas pernas, seios e braços e luxuria e me tirasse daquele lugar... Aos 33 em Stalingrado alguém pensou em você, desejou você, tinha como última angústia amar você, Ana, por mais uma noite. Você é o único cálice do qual ele não queria se afastar jamais...




Fredson...

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