Friday, June 24, 2005

Um dia Comum. Um conto bem grandão

UM DIA INCOMUM, SERÁ QUE ISSO É UM CONTO?!!!

A chuva caia fina, mas com consistência suficiente para fazer aquele barulho que lhe é peculiar ao tocar o telhado, o que para alguns é barulho, pra mim é a sinfonia de um belo e preguiçoso dia. Demorei-me um pouco mais na cama, entre uma espreguiçada e outra meu corpo teimava em não se levantar.
Aproveitei a ocasião para assistir a alguns filmes antigos, “Dança com Lobos” e “Perfume de Mulher” foram alguns deles, e alguns lançamentos como “Efeito Borboleta” e “De Porta em Porta”, excepcionais filmes. Ouvi algumas músicas antigas que gosto muito como Janis Joplin, The beatles, The Doors, Adriana Calcanhoto, Tim Maia, Djavan e Jorge Versilo, 2 Pac, Bob Marley, MV Bill, etc.. E algumas músicas clássicas, Mozart, Beethoven, Vivaldi e Albrechtsberger, só pra não pensar em nada, apenas voar pra longe da realidade e sentir o que não se sente ouvindo música cantada.
Aproveitei o momento também para olhar alguns álbuns de fotografias antigas, neles revi velhos e bons amigos que já se foram; revivi momentos felizes como aquele acampamento que eu e uns amigos fizemos no Cruzeiro da Serra do Araripe, na Arajara, toda a dificuldade para encontrar um bom caminho, aquela subida íngreme entre pedras e espinhos, até parecia a história do caminho tortuoso para entrar no paraíso. Mas acho que foi exatamente isso, pois a visão que o mirante nos proporcionava era incrível, toda a região do Cariri cabia em nossos olhos, a cena mudava a cada batida de pálpebra. Aquele ar puro... a companhia de todos os amigos... nem mesmo a chuva que insistiu em cair durante toda a noite daquele 31 de dezembro teve força suficiente para mudar nosso humor e comunhão.
Diante de um momento tão belo e sagrado, alguns tocavam violão e cantavam, outros faziam juras de amor gritando do alto do cruzeiro o nome da pessoa amada e dizendo a já tão surrada e encardida frase, que assim como o “pra sempre”, não dura mais que alguns instantes, ela, a frase, que de sagrada se tornou um profano jargão: “Fulana eu te amo” era declamado num grito inútil. Houve o pânico da procura por um ser auto-suficiente, que resolveu traçar seu próprio caminho, mas “anjos” o guiaram de volta ao grupo e em torno da fogueira a gente bebeu, cantou e celebrou a alegria do encontro e a felicidade de estarmos juntos e completos, então a noite pôde descansar em paz.
Bons momentos aqueles que já se passaram e que deixarão no rosto de quem ler e lembrar um sorriso nostálgico, e uma prece pra que tudo se repita da mesma forma como aconteceu, mesmo sabendo que tudo muda e que um raio não cai no mesmo lugar duas vezes e que dificilmente existem duas árvores iguais, assim mesmo se apela para os espíritos do acaso que aquele momento aconteça de novo.
Após olhar as fotos li um trecho de um poema que gosto muito, o guardador de rebanhos, “Eu nunca guardei rebanhos, mas é como se os guardasse. Minha alma é como um pastor, conhece o vento e o sol e anda pela mao das Estações a seguir e a olhar...O meu olhar é nítido como um girassol. Tenho o costume de andar pelas estradas olhando para a direita e para a esquerda, e de vez em quando olhando para trás... e o que vejo a cada momento é aquilo que nunca antes tinha visto, e eu sei dar por isso muito bem.... sei ter o pasmo comigo que tem uma criança se, ao nascer, reparasse que nascera deveras...”
O mestre Alberto Caeiro é de uma simplicidade e de uma profundidade que assusta e comove, fala, para mim, de uma coisa que a modernidade mata a cada dia em nós, homens-progresso: pasmo da vida. Pois é como se o futuro fosse produzido nos moldes antigos e tudo se resumisse a um tédio sem fim e à monotonia das coisas que se repetem, como as engrenagens de um relógio que sempre marca o mesmo tempo de sempre.
As “coisas da vida” perderam seu “valor” metafórico, pois o valor de fato, simbolizado por aquelas trinta moedas que o Judas cobrou para delatar O Evangelho, no tempo em que o verbo se fez carne e habitou entre nós, hoje ele mata os valores sociais e culturais, justifica traições, faz com que as tradições agonizem e o amor ao próximo seja assassinado por um calibre 38, e seja sepultado em uma vala como um indigente qualquer sem rosto e sem nome, apenas mais um mendigo, um louco, que ousou reivindicar um provérbio antigo, o “amai-vos uns aos outros como eu vos amei...” hoje, o novo Evangelho do capitalismo se conjuga assim: concorrei-vos uns com os outros, pois o reino é de quem chegar primeiro em uma corrida sem fim.
Será o começo do caos? E eu, pra que existo? Pra que vivo em um mundo em que não me acho, em que não encontro espaço? Serei eu a prova viva de que existe vida em Marte? Achei minha resposta em um poema do poeta Murilo Mendes que diz assim: “Eu existo para assistir ao fim do mundo. Não há outro espetáculo que me invoque. Será uma festa prodigiosa, a única festa. Ó meus amigos e comunicantes, Tudo o que acontece desde o princípio é a sua preparação. Eu preciso assistir ao fim do mundo Para saber o que Deus quer comigo e com todos E para saciar minha sede de teatro. Preciso assistir ao julgamento universal, Ouvir os coros imensos, As lamentações e as queixas de todos. Desde Adão até o último homem. Eu existo para assistir ao fim do mundo, Eu existo para a visão beatífica.” Assistir ao fim e ver o evangelho renovar todas as coisas.
E segue a chuva a cair, agora com um pouco mais de volume, fazendo um barulho um pouco maior.
Levantei-me peguei o telefone e liguei para uma velha amiga com quem não falava há muito. Sempre que abro meu correio eletrônico vejo uma carta dela dizendo que precisa conversar comigo, que precisa desabafar, que precisa saber de mim.
Ela não sabe, mas eu também preciso conversar com ela, preciso ouvir seus conselhos sempre tão centrados e edificantes. Acho que eu preciso mais dela do que ela de mim. Por isso pego o telefone e ligo. Conversamos por algum tempo, o suficiente para colocar os assuntos em dia, mesmo sendo eles os mais variados possíveis, amor, sexo, relacionamento, novidades, o que há de novo em sua vida? Damos asas a nossas imaginações e passamos por nossa velha (mas não tão velha assim) infância. Quem casou... quem se separou... quem foi pai... quem morreu... lembra aquela senhora que morava próximo à escola onde estudávamos e que sempre passávamos em sua casa pra ouvir suas histórias? Pois é, morreu.
Mas o que esperar da vida senão a morte? Parece sarcástico, mas é verdade. Sei que preferimos a ignorância para vivermos um pouco mais feliz, sem dor e com mais leveza, mas ela não deixa de existir e é impossível não encará-la um dia. Às vezes é bom ser breve, noutras e melhor que não seja tão cedo, mas ela sempre há de vir. Tudo que se fez fica aqui, não há nada além. Monumentos, obras, tudo fica e aquele que não viver a vida com a intensidade que ela merece vai ter muito tempo e pouco espaço para se lembrar e pensar no que poderia ter sido e não foi, no tempo que perdeu teorizando uma vida...
Toda a vaidade, toda a pompa, “pobre vaidade de carne e ossos chamada homem” ao que se resume? Logo logo cairás no esquecimento e só lembraram de você em teu aniversário de morte – e apenas uns membros da família, os mais chegados e você não vai passar de uma foto empoeirada na parede de um quarto escuro. Não sou pessimista apenas vivo a vida sem esperar nada da morte e rio daqueles que esperam por um porvir que ninguém jamais viu. Conversamos como se tivéssemos passado a última existência em silêncio, dois mudos sentindo vontade de falar e falar...e falar. Foi bom, muito bom mesmo conversar com Maria novamente.
E continua a chover.
Resolvi levantar-me de vez. Arrumei a cama, abri as janelas pra ver a chuva cair e sentir o cheiro de um dia chuvoso e fui ao encontro de minha mãe guiado pelo cheiro do café que parecia ter acabado ser feito. Tomei-lhe a benção, peguei uma xícara de café e sentei-me ao seu lado para conversarmos um pouco sobre as coisas do seu dia-a-dia, já que passo tanto tempo fora de casa no trabalho e não tenho muito tempo para lhe dedicar e ouvir o que ela tem a falar, bem como dizer o que não digo durante a semana. Dizer como ela é fundamental pra mim, e que se não fosse ela eu seria como uma seta lançada ao infinito, sem razão e sem um porto para aportar, mas não posso ser tão metafórico, é melhor dizer que a amo de forma direta.
Ainda há tempo para ouvi-la se reclamar dessa chuva que não cessa, que ajuda a deixar a casa toda manchada com as marcas dos calçados de quem entra e saí de casa. Reclama assim porque não viu as crianças brincando na rua, correndo, pulando, sorrindo de forma estridente, ziguezagueando sem sentido, procurando apenas a alegria que a chuva trazia naquele momento, mas pra entender tem de ser criança ou então um agricultor que da meia-porta da sua casa observa aquela chuva tão bem vinda, como eles dizem “o dia hoje está tão bonito” E nós, meros urbanóides, que nos vangloriamos de ter o progresso que embrutece ao alcance de nossas mãos, reclamamos daquela celebração das crianças e dos camponeses... Às vezes parece que evoluímos tanto que Deus não nos reconhece mais como sua imagem e semelhança. O guardador de rebanhos que nos guarde de nós
Pego, então, minha xícara de café e vou até o quarto da minha avó. Fico a observá-la em suas orações. Ela está de costas pra mim, olhando para a imagem que se convencionou acreditar ser a de Jesus, O Cristo, que veio ao mundo com o fardo de morrer por nossos pecados, e mal teve tempo de brincar na chuva, de correr, de sonhar e de ser feliz, ele era um homem muito ocupado, tinha que nos salvar de nós e para tanto tinha de sacrificar sua vida, “eis o meu corpo que é dado por vós, eis o meu sangue que é derramado por vós como símbolo da nova e eterna aliança..”. Comemos e bebemos como glutões a carne e o sangue do cordeiro, sem sentir o seu verdadeiro sabor, já que enquanto comíamos fazíamos contas, somávamos e multiplicávamos, contávamos histórias e riamos em voz alta. E como porcos recebemos as perolas que ele jogou em cada uma de suas pregações... E de tudo isso sobrou apenas à imagem de um Homem jovem, que não soube o que é o amor. Mas não é essa a discussão a que me proponho aqui, e pra falar a verdade o momento é de contemplação e de nenhuma outra coisa.
A imagem daquele momento é o que há de mais sagrado em mim, àquela mulher simples, que mal aprendeu a ler e escrever, que não precisou sentar em nenhuma cadeira burocrática de Faculdade, sabe de mais filosofia que qualquer livro frio que dorme na prateleira de algum shopping ou loja de conveniência ou banca de jornais ou no café do centro. Na filosofia da vida ela é mais que um simples PhD que se vangloria por ser um papagaio sem graça.
Adentro ao seu templo e começo a conversar com ela, que vai me contar sobre “aquele tempo” em que tudo era diferente, aliás, esse tema é a pauta de todo grupo de idosos que ao final da tarde se sentam em suas cadeiras de balanço a conversar e a sorrir, relembrando e falando sobre aquele tempo que não volta mais, quando até os desenhos animados eram melhores e os super-heróis sorriam. Aquelas brincadeiras que não se repetirão, “remoendo o passado com suas mil incertezas”: Aquele era um tempo em que os mais jovens respeitavam os pais, em que o pão era mais barato, em que as pessoas eram mais sinceras com as outras e consigo mesmas. “Hoje ta tudo muito diferente, tem tanta coisa nova, algumas que nem sei dizer o nome, “vidiodecassete”, DvD, sei lá como chama isso”, diz-me em sua simplicidade de pessoa que não foi totalmente tocada pelo Midas do capitalismo e seu progresso degradante, que tocou os filhos de Eva e seus degredados.
Mas não é so isso, lamentando ela me diz: “o povo esqueceu de Deus meu filho” só se fala em dinheiro, por ele se mata, se guerreia e se morre, por um centavo, meu filho, mata-se, qualquer motivo é motivo para retirar o bem maior que Deus nos deu, a vida... Tive vontade de dizer-lhe que nesse ponto há alguma semelhança com Deus, pois por Ele também já se matou, já se morreu e já se guerreou e ainda há quem lute uma Guerra Santa, só não sei em nome de qual dos dois deuses, dinheiro ou o Deus propriamente dito.
Não foram poucas as vidas e o sangue derramados em seus nomes. Vida de quem cria nele e de quem não cria, mas não discuto a fé dela. Eu simplesmente respeito. Aliás esse tipo de conversa é típico de quem já viveu por muitos anos e que hoje como diz ela, está esperando passar o tempo que lhe resta e vivê-lo em paz, brincar com seus bisnetos e ver a velocidade com que as coisas evoluem, velocidade essa que é mais perceptível a eles do que a nós criaturas modernas.
E segue a chuva, agora dando indícios de que vai dar uma trégua. O céu já começa a ficar menos denso de nuvens, a chuva diminui o seu volume, algumas pessoas já se arriscam a andar sem os velhos guarda-chuvas pretos. As crianças já começam a se dirigir para as suas casas, dando a idéia de que a brincadeira já acabou. O sol começa a aparecer secando as ruas. Volto para o meu quarto e continuo a ouvir minhas músicas, pensando nas coisas que tenho de fazer. Acho que se não fosse essa simples chuva eu não teria desacelerado o ritmo constante da minha vida, feito às coisas que fiz. Vivi um dia com mais calma, li, assisti e conversei com pessoas que há muito não dava atenção, até mesmo os mais próximos a mim como o pessoal de minha casa.
A chuva que caiu hoje serviu como um elo entre mim e o meu passado-presente. Abriu espaço pra pensar tanta coisa, vida e morte, amor e ódio, sagrado e profano, tanta coisa. Ensinamentos sagrados como os de minha avó e todos os que ainda resistem à vida e ao lado negro do progresso. Uma certeza ficou, pelo menos em mim, a de que um dia nós estaremos sentados em alguma calçada ou praça do futuro, a pensar como naquele nosso tempo foi bom, em como tudo é diferente hoje, acho que isso é o que se chama de dinâmica da vida e comprova o que sempre se suspeitou, a vida é cíclica.
Agradeço a chuva por esse dia, e por tudo de bom que me fez acontecer hoje. Acho que não vou sair de casa, vou passar o dia inteiro com minha família, almoçar, dormir um pouco à tarde, assistir a um filme a noite com minha amada e recomeçar tudo novamente, só que com um pouco mais de calma e paciência e atenção na vida e nas pessoas que me cercam. Posso quebrar uma regra e fazer da segunda-feira um outro dia diferente de tantas outras segundas-feiras a que tenho sobrevivido desde muito tempo.


Fredson...

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